terça-feira, 12 de julho de 2011

A Invenção do Sertão

"Capistrano de Abreu Lamentava Que a História Brasileira
Tivesse Ficado Apenas No Litoral".
                     “O que é o tempo? Se não me perguntam, eu sei; se me perguntam, desconheço”. A frase de Santo Agostinho, que me chegou através do escritor argentino Jorge Luis Borges, mais parece um aforismo de Guimarães Rosa: O que é o sertão? Se não me perguntam, eu sei; se me perguntam desconheço. Segundo o dicionário Houaiss, o sertão é uma região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas, em especial a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado, e onde permanecem tradições e costumes antigos. Para Câmara Cascudo o sertão é o interior, como o definiram os cronistas Fernão Mendes Pinto, o Padre Antonio Vieira e o escrivão Pero Vaz de Caminha.
                      O sertão dos bandeirantes paulistas situava-se na Serra do Mar ou além dela, em floresta atlântica, onde grilavam índios, procuravam ouro, pedras preciosas e caçavam animais de peles comerciáveis. Capistrano de Abreu lamentava que a história brasileira tivesse ficado apenas no litoral, não adentrasse os interiores. Os primeiros mapas desenham um Brasil costeiro. Só mais tarde, com o avanço da colonização e o trabalho dos exploradores, seguindo os cursos dos rios, chega-se ao outro Brasil.
                      Os ingleses traduzem sertão como backlands – terras de trás. Olhando o mar e o litoral, tudo o que está às costas seria sertão. Esse primeiro significado valia para as terras gerais do Brasil. A palavra sertão ainda não fora reinventada pelos escritores, poetas, pintores e cineastas. Ainda não ganhara os limites geográficos que hoje a situa em zonas mais áridas, sobretudo nordestinas. Cascudo escreveu que “o nome fixou-se no Nordeste e no Norte, muito mais do que no Sul. O interior do Rio Grande do Sul não é sertão, mas poder-se-ia dizer que sertão era o interior de Goiás e de Mato Grosso”. Para Guimarães Rosa, ele se situa nos gerais de Minas.
                       Há algo que sentimos como sertão. Talvez ele nos transmita um apelo, o mesmo que Rudyard Kipling ouviu em relação ao Oriente. – “Se ouvires o apelo do Oriente, já não ouvirás outra coisa”. Se ouvires as vozes sertanejas, já não escutarás outras vozes. Nem enxergarás outras perspectivas, como um cearense a quem subiram num prédio alto de São Paulo e pediram que dissesse o que avistava e ele respondeu: o Crato. O sertão habita em nós, mesmo quando já não o habitamos. O sertão é como Deus definido por Hermes de Trimegisto: uma circunferência cujo centro está em toda parte e a periferia em nenhuma. O sertão é a essência, o miolo, o cerne. É marca de ferro que nos queima e nunca se desfaz. O sertão é o silêncio das pedras, as ausências. O sertão não existe, é pura invenção dos poetas.
                       O sertão é anterior ao descobrimento. Ele já se fundara em Creta, na Grécia Antiga, o berço da civilização ocidental, no culto ao touro, na arte de domar a rês. E em Israel com o legado da Escritura Sagrada. O Oriente e o Ocidente se juntaram no sertão, no sedimento da cultura moura e judaica transportada da Península Ibérica.
                       Mas é através dos artistas que o sertão se inventa. Cada um cria o próprio ferro de marca, o sertão pessoal que vira patrimônio de todos: José de Alencar, Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Jorge Amado, Glauber Rocha.
                       O cinema do ciclo do cangaço fixa os estereótipos de um regionalismo que a televisão irá explorar de forma grosseira e vulgar. Surgem caricaturas de trajes e falas, os coronéis, as sinhás, os vaqueiros que não são cowboys. Retrata a miséria, os mandacarus e chique-chiques, os despotismos, a sanha dos cangaceiros. O sertão por essas lentes é um mundo sem épica, de tragédias sem sentido trágico. Não possui a dignidade de um faroeste americano, do cinema de John Ford, John Huston ou Roberto Leone.
                        À margem do poderoso mundo da comunicação, os poetas, violeiros, cordelistas, aboiadores, contadores de história, xilogravadores, ferreiros, artesãos do couro, bordadeiras, romeiros e brincantes dos autos populares continuaram produzindo uma arte que se filia à tradição universal. Através deles, se realizou o milagre de síntese de várias culturas milenares.
                         No sertão, origens e tempos se misturam. O aboio, que chama para o curral o gado de semente indiana, lembra o canto de um muezim muçulmano. O sertanejo habita uma casa de arquitetura portuguesa. Come o pão em que o trigo foi substituído pelo milho de lavra indígena. Acende um cigarro de fumo da terra, e põe na cabeça um chapéu de palha com trançado africano. Dentro de casa, a esposa vê televisão, e o filho pequeno brinca num vídeo game. E o homem nem imagina que nele deságuam civilizações e saberes. Repara na tarde “que tem qualquer coisa de sinistro como as vozes dos profetas anunciadores de desgraça”, e num vaqueirinho que testa o aparelho celular, buscando sintonia com o mundo.

RONALDO CORREIA DE BRITO é autor de Faca, O livro dos homens, Galiléia e Retratos Imorais.

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